O romance “O Cortiço”, escrito por Aluísio Azevedo e publicado em 1890, é considerado uma das obras mais importantes do Naturalismo brasileiro. Esta narrativa intensa e vívida mergulha nas profundezas da sociedade carioca do final do século XIX, explorando temas como desigualdade social, ambição e a luta pela sobrevivência em um ambiente urbano em transformação.
O Cortiço
Contexto histórico e literário
“O Cortiço” surge em um momento crucial da história brasileira. O país estava passando por mudanças significativas, como a abolição da escravatura (1888) e a proclamação da República (1889). Essas transformações sociais e políticas se refletem na obra de Azevedo, que utiliza o microcosmo do cortiço para retratar as complexidades da sociedade brasileira em transição.
O Naturalismo, movimento literário do qual Azevedo foi um dos principais expoentes no Brasil, buscava retratar a realidade de forma crua e objetiva. Influenciado pelas teorias científicas da época, como o determinismo e o darwinismo social, o autor apresenta seus personagens como produtos de seu ambiente e herança genética.
Enredo e personagens principais
A trama de “O Cortiço” gira em torno da construção e desenvolvimento de uma habitação coletiva no Rio de Janeiro. O protagonista, João Romão, é um português ambicioso que, através de trabalho árduo e práticas questionáveis, constrói um império a partir de seu cortiço.
Outros personagens importantes incluem:
- Bertoleza: Escrava que se torna amante e sócia de João Romão.
- Miranda: Vizinho rico de João Romão, representante da burguesia.
- Jerônimo: Português trabalhador que sucumbe aos “vícios” do Brasil.
- Rita Baiana: Mulata sensual que simboliza a “brasilidade” e seduz Jerônimo.
- Pombinha: Jovem educada que acaba se prostituindo.
Cada personagem representa diferentes aspectos da sociedade brasileira, desde a exploração do trabalho até questões de raça e gênero.
Análise temática
Determinismo social e ambiental
Um dos temas centrais de “O Cortiço” é o determinismo, a ideia de que o comportamento humano é moldado pelo ambiente e pela hereditariedade. Azevedo demonstra como o cortiço, com suas condições precárias e ambiente degradante, influencia o comportamento de seus habitantes.
Por exemplo, vemos como Jerônimo, inicialmente um trabalhador honesto e dedicado, é gradualmente corrompido pelo ambiente do cortiço e pelos encantos de Rita Baiana. Esta transformação ilustra a crença naturalista de que o meio tem um poder irresistível sobre o indivíduo.
Crítica social e denúncia
Azevedo utiliza sua narrativa para fazer uma crítica contundente à sociedade brasileira da época. Ele expõe as desigualdades sociais, a exploração dos trabalhadores e a corrupção moral que permeava todas as classes sociais.
A ascensão de João Romão, por exemplo, é retratada como resultado de uma combinação de trabalho árduo e práticas imorais, incluindo a exploração de Bertoleza. Esta narrativa serve como uma denúncia do capitalismo predatório e da mobilidade social baseada na exploração dos mais vulneráveis.
Questões raciais e de gênero
“O Cortiço” também aborda questões complexas de raça e gênero. A personagem de Rita Baiana, por exemplo, encarna estereótipos raciais da época, sendo retratada como uma mulata sensual e sedutora. Ao mesmo tempo, Azevedo explora como as mulheres, especialmente as de classes mais baixas, eram frequentemente vítimas de exploração sexual e econômica.
O tratamento dessas questões no romance reflete as teorias raciais em voga no final do século XIX, mas também serve como um espelho das tensões e preconceitos presentes na sociedade brasileira da época.
Estilo narrativo e técnicas literárias
O estilo de Azevedo em “O Cortiço” é marcado por:
- Descrições detalhadas: O autor pinta um quadro vívido do ambiente do cortiço e de seus habitantes, utilizando uma linguagem rica em detalhes sensoriais.
- Narrador onisciente: A narrativa é conduzida por um narrador que tem acesso aos pensamentos e motivações de todos os personagens, permitindo uma visão abrangente da trama.
- Zoomorfização: Frequentemente, os personagens são comparados a animais, ressaltando seus instintos e comportamentos primitivos.
- Linguagem coloquial: Azevedo incorpora o linguajar popular em seus diálogos, conferindo autenticidade às interações entre os personagens.
- Ritmo acelerado: A narrativa mantém um ritmo intenso, refletindo a agitação e o dinamismo da vida no cortiço.
Impacto e relevância contemporânea
Mais de um século após sua publicação, “O Cortiço” continua sendo uma obra de grande relevância. Sua análise aguda das desigualdades sociais e dos mecanismos de exploração ainda ressoa na sociedade brasileira contemporânea.
A obra nos convida a refletir sobre questões como:
- A persistência da desigualdade social no Brasil
- As complexas relações entre raça, classe e gênero
- O impacto do ambiente urbano na vida e no comportamento das pessoas
- A ética do sucesso e da mobilidade social em uma sociedade capitalista
Além disso, o romance de Azevedo continua sendo uma leitura obrigatória em muitas escolas brasileiras, servindo como uma introdução à literatura naturalista e como um ponto de partida para discussões sobre a história e a sociedade brasileira.
Conclusão
“O Cortiço” de Aluísio Azevedo é muito mais que um simples retrato da vida em uma habitação coletiva do Rio de Janeiro do século XIX. É uma obra que disseca as entranhas da sociedade brasileira, expondo suas contradições, injustiças e complexidades. Através de sua narrativa envolvente e personagens memoráveis, Azevedo criou um clássico atemporal que continua a provocar reflexões e debates sobre a natureza humana e as estruturas sociais.
A leitura de “O Cortiço” não apenas nos transporta para um momento crucial da história brasileira, mas também nos convida a examinar criticamente nossa própria sociedade. É um testemunho do poder da literatura em capturar a essência de uma época e, ao mesmo tempo, transcender seu contexto histórico para falar diretamente aos leitores de gerações futuras.
Em suma, “O Cortiço” permanece como uma obra fundamental para compreender o Brasil, sua história e seus desafios sociais persistentes. Sua análise aguda e sua narrativa envolvente continuam a cativar leitores, fazendo desta obra um verdadeiro pilar da literatura brasileira.